USP anula concurso de professora negra aprovada por unanimidade; Defensoria Pública se manifesta

Publicado em 02 de Dezembro de 2025 às 16h40. Atualizado em 02 de Dezembro de 2025 às 17h48

A Universidade de São Paulo (USP) decidiu anular o concurso público que aprovou por unanimidade a professora e pesquisadora Érica Bispo para a vaga de docente de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). A decisão, tomada em março deste ano, contradiz o parecer da Congregação da própria FFLCH e a conclusão do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que arquivou o inquérito sobre o caso por não encontrar indícios de irregularidades.

Érica Bispo. Foto: Adusp SSind

Érica Bispo, que possui mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi aprovada por unanimidade em 21 de junho de 2024 e nomeada em portaria assinada pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior em 12 de novembro de 2024. O processo de anulação foi desencadeado por um recurso apresentado por seis candidatas e candidatos que alegaram "possíveis irregularidades", focando em supostas "relações pessoais muito próximas" entre a candidata aprovada e membros da banca.

"Eu soube do recurso através de uma outra candidata, com quem entrei em contato semanas depois do concurso. Ela me falou que tinha entrado com recurso, junto com outros candidatos, mas não me deu detalhes”, disse Érica Bispo.

Inquérito civil
O caso foi levado ao Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). O objeto do inquérito civil era a apuração de suposta irregularidade no concurso público de títulos e provas, referente ao Edital FFLCH/FLC n°. 024/2024. O MP-SP investigou o episódio e considerou que não houve improbidade e que o concurso é legítimo.

Apesar de o MP-SP ter arquivado o inquérito e a FFLCH ter rejeitado o recurso (com 22 votos pelo indeferimento) em setembro de 2024, a Procuradoria-Geral (PG) da USP acolheu a demanda das e dos candidatos considerando que "fotos retiradas de publicações de redes sociais demonstrariam 'convivência íntima' e 'não circunscrita ao âmbito acadêmico'", entre Érica e duas docentes da banca.

Prédio da FFLCH/USP. Foto: Eline Luz / Imprensa ANDES-SN

Érica Bispo contestou veementemente essa alegação. Ela explica que a conclusão de amizade íntima foi baseada em "algumas fotos em grupo, em momento de lazer, durante congressos acadêmicos". Ela enfatiza que as "seis fotos aleatórias retiradas de redes sociais" retratam eventos e congressos da área de literaturas africanas, que é uma área pequena, e que definitivamente "não provam uma amizade íntima". Além disso, a banca era composta por cinco componentes, e todos os cinco lhe deram notas altas e consistentes.

A professora, que é servidora pública desde 2006, critica que o concurso tenha sido anulado por um "mero indício" e alega que a USP não lhe garantiu o direito à ampla defesa. “Hoje, várias universidades estabelecem mecanismos de controle para concursos docentes que já estão previstos e explicitados no edital. Tradicionalmente, levantar suspeitas sobre a banca tem um prazo específico antes da realização do certame. Suspeitar da banca após o resultado final - que foi o que o recurso fez - é algo recorrentemente descartado na maior parte das universidades, porque, na verdade, só demonstra insatisfação com o resultado”, criticou a servidora.

Luta contra o racismo
Como mulher negra, Érica Bispo disse que vê a contestação do resultado como um ato discriminatório. Segundo ela, muitas pessoas negras têm compartilhado histórias de como são impedidas de ocupar espaços de poder, como vagas de docência nas universidades.

“Pelo aspecto racial, o Brasil ainda precisa tratar da herança escravocrata, que nega ao sujeito negro os espaços de destaque social e cria barreiras para a ascensão de mais da metade da população. Há em tramitação na Câmara uma PEC [27/2024] que prevê um fundo para reparação pelos males da escravidão. Esse tipo de ação visa a redução do racismo estrutural e institucional que hoje permeia o país”, contou a Érica, que compartilhou que o efeito da anulação foi severo, principalmente no aspecto emocional. Devido ao estresse, a servidora emagreceu 5 kg em um mês, enfrentando problemas digestivos graves.

Novo concurso
A anulação da nomeação de Érica foi publicada em 15 de julho de 2025, e em 1º de outubro o Diário Oficial do Estado publicou um novo concurso para a mesma vaga. No entanto, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) encaminhou um ofício à USP solicitando a anulação de um novo processo seletivo para o cargo de docente de literaturas africanas em língua portuguesa.

“O novo concurso consolidou a injustiça e passou por cima do meu direito. Fui aprovada por mérito, por unanimidade, por todos os cinco avaliadores que estavam compondo a banca, tanto aqueles que tiveram a suspeição levantada quanto os que não tiveram. Com a abertura do novo edital, a minha luta se tornou uma corrida contra o tempo”, relembrou Érica.

O ANDES-SN entrou em contato com o Núcleo Especializado de Promoção da Igualdade Racial e Defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais, instância consultiva e propositiva da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que informou que a Defensoria solicitou a suspensão do concurso até a conclusão da defesa administrativa referente à situação da professora Érica. Entretanto, "a Universidade de São Paulo esclareceu que não há óbice para a continuidade do certame", ou seja, que não vê problema para continuar com o concurso. Foi informado ainda que a própria professora Érica já entrou na Justiça, com um advogado particular, para tratar do caso.


ANDES-SN na luta
O ANDES-SN, por meio da Comissão Nacional de Enfrentamento à Criminalização e Perseguição Política a Docente, tem intensificado sua atuação em defesa de professoras e professores vítimas de Processos Administrativos Disciplinares (PADs) considerados injustos e ações persecutórias nas instituições e, ainda, casos de racismo institucional.

“O caso da professora Érica Bispo está sendo acompanhado pela Comissão de Combate à Perseguição Docente, que é uma instância do ANDES-SN, que faz enfrentamento a todo e qualquer tipo de violência institucional. Para a direção do Sindicato Nacional, o que o Conselho Universitário da USP fez em relação ao concurso de Érica Bispo é racismo institucional. Todo o processo é marcado por várias irregularidades, para que o Conselho Universitário desrespeitasse a decisão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Somos solidários à professora Érica Bispo e estamos, junto com ela, tomando todas as medidas políticas, institucionais, administrativas e judiciais para que a lei de cotas seja garantida e a professora devidamente nomeada e empossada”, afirmou Caroline Lima, 1ª vice-presidenta do ANDES-SN e da Comissão Nacional de Enfrentamento à Criminalização e Perseguição Política a Docente.

Outros casos
Em agosto de 2023, a Defensoria Pública de São Paulo já havia entrado com ação pedindo a suspensão de mais de 200 concursos da USP, sob o argumento de que os editais não previam a adoção da política de ações afirmativas (cotas raciais) aprovada pela universidade em maio daquele ano. A entidade afirma que a exclusão de pretos, pardos e indígenas dos concursos abrevia décadas de atraso na democratização do quadro de docentes, servidoras e servidores da instituição, comprometendo o alcance da meta de representatividade racial no corpo técnico e docente da USP.

Os casos não se remetem só a USP. Também em 2023, o docente Ilzver de Matos Oliveira, homem negro, advogado, doutor em Direito e ativista dos direitos humanos, ganhou projeção ao vencer uma longa batalha contra o que chamou de racismo institucional na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Ele foi aprovado em 1º lugar nas cotas raciais e 2º na ampla concorrência em concurso de 2019 para o Departamento de Direito, mas teve sua nomeação barrada mesmo havendo três vagas abertas. Com investigação do Ministério Público Federal sobre descumprimento da Lei 12.990/14, que determina a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos da administração federal para candidatas e candidatos negras e negros, e forte mobilização social, Ilzver tomou posse como professor adjunto em 17 de março de 2023. 

Na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), a docente Ana Luísa de Oliveira - primeira professora negra aprovada por cotas na instituição - enfrentou um processo de posse contestado que envolvia a equivalência de seu título de doutorado e a omissão da Reitoria em incorporar formalmente a deliberação favorável do Conselho Universitário no processo judicial. Em reunião realizada em abril deste ano, a Univasf se comprometeu a garantir institucionalmente a sua permanência e a formalização desse reconhecimento no trâmite judicial, reafirmando o compromisso com a inclusão e as ações afirmativas.

Leia também:
ANDES-SN intensifica atuação em defesa de docentes vítimas de perseguição política em instituições

Compartilhe...

Outras Notícias
ÚLTIMAS NOTÍCIAS
EVENTOS
Update cookies preferences